segunda-feira, 27 de abril de 2009

O Homem Duplicado

Inaugurarei aqui um novo desafio pessoal. A cada livro que ler escreverei uma pequena resenha, meio que para treinar e estimular minha escrita, meio que para divulgar histórias bacanas contadas pelos nossos 'amigos de papel'. Começarei por um título escrito por um Nobel, que acabo de ler: O Homem Duplicado, de José Saramago (Campanhia De Bolso, 2008).



O romance, escrito em 1992, trata de um inusitado caso ocorrido com o pacato professor de história Tertuliano Máximo Afonso. Ao assistir um filme indicado por um colega, Tertuliano vê em um dos atores seu próprio corpo, e ele no corpo do ator. O raríssimo caso dos homens iguais impele o herói à tomar uma série de ações que conduzem a ação dramática rumo ao imprevisível.

O cotidiano é o relógio a marcar o tempo. Em meio ao dia-a-dia conturbado e intenso de cada personagem as situações vão figurando e a trama se desenrola. A urbanidade, presente a todo momento, e a pouca relação histórica, política ou geográfica com a cidade onde vivem as personagens, dá a impressão de que a história pode se passar em qualquer lugar do mundo. É nesse sentido que se percebe a real intenção do escritor ao narrar o romance: discutir a individualidade no contexto da globalização.

Não se trata de gêmeos, clones, experimentos sigilosos de um cientista louco. Se trata da perda da identidade numa sociedade cada vez mais individualista. Se o que nos faz sermos nós mesmos é a nossa identidade exclusiva, o que dizer/fazer quando ela é abalada pela descoberta da existência de alguém igual a nós? Que ações tomar e quais as consequências de toma-las?

Tertuliano Máximo Afonso - assim mesmo, com nome e sobrenome, como Saramago teima em lhe chamar durante o romance, talvez para insistir na importância da identidade na trama -, que era um sujeito pacato, sem grandes ambições, começa a agir, tomar decisões sem se preocupar com as consequências (ou ignorando-as). Ele investiga a vida de seu duplo, entra em sua vida e ele na dele. As consequências são fantásticas, o suspense está presente. Um verdadeiro triller, digno de uma boa adaptação pro cinema.

Sem sombra de dúvida O Homem Duplicado é um ótima dica de leitura. Já tinha lido Jangada de Pedra, também de Saramago (outra 'pedrada'), e vou aproveitar o gancho pra cair em cima de Ensaio sobre a Cegueira, pra ver o filme depois...

Pra encerrar, uma frase da ante-capa: "O Caos é uma ordem por decifrar, Livro dos Contrários."

Espero ter incentivado alguém à leitura.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Deputados de Santa Catarina parecem não ter aprendido com a enchente

A Assembléia Legislativa de Santa catarina aprovou no dia 31 de março o Código Florestal do estado. A medida tem dado o que falar pois o codigo aprovado é menos restritivo que o Código Florestal Federal em relação á Área de Preservação Permanente (APP) ao longo de córregos. A lei federal exige uma área de 30 metros para rios de 5 metros de largura, o código estadual exige apenas 5 metros. O Código aguarda sanção do governador do estado.

Na prática, o código legalizará propriedades que desrespeitam a APP regulamentada pela lei Federal. Mas a confusão ficará mesmo a cargo dos analistas ambientais do IBAMA e fiscais ambientais. O ministro Carlos Minc (Meio Ambiente) já avisou que sancionada ou não os agentes do IBAMA seguirão as normas da lei Federal, pois, uma lei estadual não pode ser menos restritiva que a federal. Este pensamento é compartilhado com a Procuradoria da República, que ignorará o novo código.

O código estadual tem amplo apoio da bancada ruralista de Santa catarina, que parece não ter aprendido com a tragédia de novembro passado. A mata ciliar é tida como a principal arma contra o assoreamento de rios e enchentes, pois elas protegem as margens de rios e cursos d'água contra a erosão e auxiliam na infiltração da água da chuva nos solos, evitando que rios tenham a vazão aumentada rapidamente e ocasionem enchentes.

Se a lei for sancionada, o estado de santa catarina estará dando um passo para trás na preservação do meio ambiente e na prevenção de enchentes. A redução das APPs em rios atende apenas ao interesse de produtores rurais, um setor com forte influência política e econômica, tendo em vista os empregos e divisas gerados. Mas a sociedade é composta por setores diversos e decisões políticas devem estar de acordo com esta pluralidade.

O Agronegócio não pode querer tudo. Já desmataram a Mata Atlântica; o Cerrado já teve 40% de sua área desmatada para o plantio de soja; a amazônia está sendo explorada de forma predatória por criadores de gado e madereiras ilegais; o Pantanal Matogrossense está na mira dos usineiros que tentam derrubar uma lei que proíbe o plantio de cana na região; e, agora, Santa Catarina quer reduzir a APP regulamentada por lei federal.

A custo de que? Se os recursos naturais forem explotados, vai ficar difícil pro próprio agronegócio sobreviver a longo prazo. Será o verdadeiro 'tiro no pé', tendo em vista os serviços ambientais prestados pelas áreas de vegetação nativa, como o controle climático, manutenção do regime hídrico, fornecimento de nutrientes ao solo e controle de pragas, por exemplo.

Enquanto as políticas ambientais forem planejadas por senhores gananciosos e incopetentes, não haverá possibilidade de um futuro sustentável para as novas gerações.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O homem fora do pedestal

Ilustração: Millena Lízia

Quando a ciência caminhava lado a lado com a religião, grandes cientistas tinham que romper com antigos tabus. Se Galileu Galilei, pai da ciência moderna, teve importante papel na aceitação (e comprovação) das idéias de Copérnico que tirou o planeta Terra do centro do Universo, Charles Darwin, um pouco depois, tira o homem do centro da natureza.




Certamente meu escritor de divulgação científica favorito é Stephen Jay Gould (1941 – 2002), ganhando até mesmo do Richard Dawnkins, que considero meu teórico do ateísmo. Gould, era judeu de nascença e por ser um evolucionista ferrenho, era agnóstico – quem acredita que a questão da existência ou não de um poder superior não foi nem nunca será resolvida. Mas, tirando a questão espiritual de foco, o que me leva a digitar estas palavras é um ensaio, dos muitos que Gould escreveu mensalmente até sua morte, publicado no livro “Dinossauro no Palheiro: reflexões sobre história natural. Cia. Das Letras, 2005 – S. J. Gould”. Intitula-se “Caminhando pela evolução”, começa na página 305 do livro, e trata da reforma dos salões dos mamíferos fósseis no American Museum of Natural History (Museu Americano de História Natural).

Gould parte do pressuposto que as impressões do público sobre a evolução dos mamíferos – nós incuídos – são guiadas pela iconoclastia, ou seja, pelos símbolos e imagens associadas à evolução. Seriam elas, principalmente: a árvore genealógica, onde os seres supostamente mais complexos – geralmente primatas - ocupam os ramos superiores; e a figura já clássica do primata caminhando da esquerda para a direita, evoluindo e finalmente chegando como ser humano no fim da caminhada. Isso faria o público imaginar que existe uma hierarquia na natureza e que o homem tem algo em especial que faz com que nós e nossos parentes mais próximos, sejamos dignos de um lugar acima (ou à frente) dos outros seres. Essa impressão é passada mesmo em livros didáticos de zoologia dos vertebrados, onde os primatas aparecem majoritariamente nos últimos capítulos. Museus também costumam seguir essa ‘regrinha’ medíocre.

Mas não é bem assim. Qualquer espécie que surja neste pequeno planeta, e sobreviva, está plenamente adaptada ao ambiente, independentemente de sua complexidade estrutural, molecular ou psíquica. Uma bactéria, apesar da simplicidade, está tão bem como nós – algumas, inclusive, dentro de nós. Sendo assim, a classificação taxonômica dos seres vivos é feita em relação à distância temporal da última novidade adaptativa a surgir. Características mais recentes estão nos ramos superiores das árvores genealógicas, não os mais complexos ou superiores evolutivamente – conceito que não se sustenta. Esse ponto de vista, entretanto, tem o incomodo – para alguns – de colocar os primatas, humanos ou não, no meio da evolução dos mamíferos, não no final.

Nesse ensaio, Gould, se prende à evolução dos mamíferos que, em resumo, ocorreu assim (baseado no ensaio):

1 – FOSSA SINAPSÍDEA. A 250 milhões de anos, no final da era Paleozóica, um grupo de répteis desenvolveu uma abertura no crânio atrás da órbita ocular, e esta característica, chamada de fossa sinapsídea, foi preservada por seus descendentes. Todos os mamíferos a possuem (os músculos que fecham a mandíbula ligam-se ao crânio por esta abertura), inclusive esses animais, que eram considerados répteis e hoje são conhecidos como sinapsídeos. São os elos mais próximos entre dinos e mamíferos.

2 – OSSOS DO OUVIDO MÉDIO. Dois ossos do maxilar reptiliano foram reduzidos e transformados na bigorna e no martelo, ossos do ouvido médio ligados à audição (os répteis possuem apenas o estribo. Como diz um dos postulados da lei da termodinâmica: ‘na natureza nada se cria, tudo se transforma’. Assim é com a evolução.). Esse ponto é considerado crucial na distinção entre répteis e mamíferos e é averiguável no registro fóssil. Esses seres são chamados de monotremados (ornitorrinco e marsupiais).

3 – PLACENTA. O próximo passo evolutivo foi o surgimento da placenta, e a consequente gestação completa no útero da fêmea (Ornitorrincos são mamíferos que botam ovos e os marsupiais – gambás, cangurus – completam os últimos meses de gestação numa bolsa, o marsúpio). Surgiram preguiças, tamanduás e tatus, chamados de edentados, pois tem a placenta, mas não a próxima característica.

4 – ESTRIBO EM FORMA DE ESTRIBO. A próxima característica é uma perfuração no estribo, que é atravessado por um importante vaso sanguíneo e todos os mamíferos subsequentes tem esse orifício. Os animais que possuem esta característima, mas não a próxima, são os carnívoros, os roedores, os morcegos e os primatas – nós inclusos, claro.

5 – CASCOS. O próximo grupo a surgir apresenta os dedos das patas coalescentes, como cascos, e são representados hoje em dia pelos ungulados (cavalos, cabras, antílopes, girafas, etc.) e baleias (os cetáceos descendem de ungulados, mas não têm cascos pelo motivo óbvio de adaptação aquática).

6 – ÓRBITAS OCULARES PRÓXIMAS DO FOCINHO. A última característica desenvolvida pelos mamíferos são as órbitas oculares que avançaram para frente do crânio, até uma posição próxima do focinho. As espécies mais conhecidas a apresentarem esta característica são os elefantes e os peixes-boi.

É claro que, dentro de cada grupo, as espécies continuaram, e continuam, a evoluir e adquirir novas características. Muitas delas recentes. Mas a organização dos principais grupos de mamíferos segue esta pequena lista citada acima.

A grande ‘sacada conceitual’ do Museu Americano de História Natural foi organizar a visitação da ala de mamíferos fósseis seguindo os caminhos da evolução. Desta forma, o visitante, ao iniciar a visita, é convidado a conhecer os sinapsídeos, depois os monotremados, seguidos dos edentados, depois os placentários, posteriormente os carnívoros, roedores, morcegos e primatas (olha nós aê!), depois os ungulados e, finalmente, elefantes e peixes-boi. O homem foi retirado de seu pedestal de arrogância e figurou entre seus semelhantes. Pode parecer pouca coisa, visto desta forma, mas não é assim que os museus de história natural costumam ser ordenados. Geralmente os primatas e o homem estão no fim da exposição, dando impressão de serem o objetivo final da história natural. Assim como em livros e na percepção pública da evolução.

Não se trata apenas de ordenar corretamente museus e livros e aperfeiçoar o ensino de ciências, mas, acima de tudo, criar uma cultura que nos coloque entre os outros seres, não acima deles. Uma consciência que não dê tenta importância ao nosso andar bípede, polegar opositor e telencéfalo desenvolvido. A arrogância do ser humano em se sentir especial justifica o caos ambiental em que vivemos. “Crescei e multiplicai-vos”. "Não sou dono do mundo, mas sou filho do dono". "Esgotem os recursos". "Consumam". "É de vocês". "É pra vocês". "O planeta é nosso, aha-uhu!"

Essa falácia - desculpem a cutucada - fundamentalmente criacionista, foi a justificativa de George W. Bush filho para não assinar o protocolo de Quioto e que muitos outros usam para derrubar a Amazônia, comprar carrões que liberam toneladas de carbono na atmosfera todo ano e destruir o ambiente, de uma forma geral. Não quero dizer que todo criacionista deseja isso, mas é esse o conceito que defendem.

Acredito piamente que, para resolvermos pacificamente esse novo paradigma ambiental, o ser humano, como principal e único responsável, deve se redimir e se posicionar ao lado das outras espécies. Não somos superiores. Não somos perfeitos. E, principalmente, precisamos da qualidade e diversidade de vida no planeta para nossa própria sobrevivência. Sob risco de não deixarmos descendentes para pensar sobre isso no futuro.