Por: Yuri Teixeira Amaral
A estatística é muitas vezes vista como uma ciência arrogante, desprovida de sentimento e guiada por uma lógica que só é entendida pelos estatísticos, que acabam por ser confundidos com semi-deuses. Apesar disso, a todo momento temos que tomar decisões de acordo com a lógica e a razoabilidade, mas poucas vezes percebemos a estatística embutida na tomada de decisão, e é justamente isso que importa afinal de contas.
No episódio de “A grande família” da rede Globo, exibido dia 10 de outubro de 2008 a matriarca da família, Dona Nenê, estava em um impasse: ela havia feito promessa para Nossa Senhora e se comprometeu a caminhar em romaria até Aparecida (SP) caso Agostinho e Bebel (sua filha) lhe dessem um netinho. A criança de fato nasceu, foi batizada de Floriano e Nenê se viu na obrigação de cumprir a promessa percorrendo os mais de 263 km que separam o Rio de Janeiro de Aparecida. Entretanto, Lineu, seu marido, convencido que o neto não era fruto de intervenção divina e de que Dona Nenê não conseguiria percorrer o trajeto e chegar sã e salva a seu destino, tentava dissuadir-la da promessa:
- Nenê, como você pode ter certeza que o nascimento do Floriano foi obra da Nossa Senhora Aparecida? – perguntou Lineu.
- E como você sabe que não foi? – indagou Nenê.
Pois bem, finalmente chegamos à estatística. Não vou usar a matemática para evitar assustar o leitor, de forma que vou usar apenas raciocínio lógico. Neste caso precisamos avaliar a probabilidade de ter havido intervenção divina e qual o risco da tomada de decisão. A hipótese a ser testada será: O neto da Dona Nenê é fruto de intervenção divina. Caso seja ‘correta’, Nenê deverá assumir o risco da viajem para se safar do purgatório. A hipótese nula (aquela que tentaremos refutar) será: O neto da Dona Nenê foi concebido por outra causa que não intervenção divina (devido a um evento estocástico, tratamento contra infertilidade, aumento da frequência de copula, etc.), e se for ‘correta’ Nenê poderá ficar tranqüila em casa sabendo que não passará a eternidade no inferno por descumprir a promessa.
Quando lidamos com avaliação de risco, na estatística, devemos ficar atento a dois principais tipos de erro: o erro do tipo I e erro do tipo II. O primeiro ocorre quando aceitamos a hipótese nula quando ela é falsa (seria o caso da Dona Nenê achar que não foi Nossa Senhora que concebeu seu neto quando na verdade foi e deixar de cumprir a promessa, correndo o risco de padecer no reino de Satã por toda eternidade). Já o segundo ocorre quando negamos a hipótese nula quando ela é verdadeira (Ou seja: Floriano nasceu por puro azar, mas assim mesmo Dona Nenê alegaria intervenção divina e percorreria o trajeto, correndo o risco da viajem a toa, pois não seria necessário cumprir a promessa).
Aparentemente Lineu está mais preocupado com o erro do tipo II, e prefere não ver sua esposa correr o risco da viajem. Já Nenê se preocupa em cometer o erro do tipo I e ter de assumir o risco de ir pro inferno. Mas afinal de contas, qual decisão Nenê deve tomar?
Em um estudo científico o pesquisador utilizaria cálculos complexos para avaliar a probabilidade de se cometer cada um dos erros e poder justificar sua decisão. Entretanto, o caso levantado por esse modesto escritor não é mensurável, pois não poderemos usar a matemática para testar a possibilidade de Nossa Senhora interferir na vida de reles mortais. A única possibilidade que nos resta, então, é avaliar o risco.
Qual risco Nenê deveria assumir? O de passar toda a eternidade sendo chicoteada no inferno ou de sofrer durante alguns dias numa viajem longa e solitária rumo a Aparecida do Norte? Provavelmente ela toparia a viajem e tomaria medidas para obter sucesso na empreitada, como: melhorar suas condições físicas entrando na academia alguns meses antes da caminhada; se associar com outros romeiros para evitar o risco de assalto, e; levar uma garrafinha de água (quem sabe também algum amuleto).
Provavelmente ela conseguiria cumprir a promessa (de fato milhares de pessoas fazem isso todos os anos, percorrendo inclusive distâncias maiores que Dona Nenê) e seria grata o resto da vida à Nossa Senhora. Porém ela nunca terá certeza se houve intervenção divina ou não, apesar de que acreditará nisso pelo resto de sua vida.
Obviamente não é competência da estatística avaliar a probabilidade de ocorrerem eventos místicos ou milagres, e é impossível planejar experimentos capazes de testar a ocorrência desses eventos. Porém o exercício de vislumbrar a lógica por trás de decisões que envolvam entidades religiosas nos faz entender o que move os fieis a atribuírem benfeitorias a essas entidades. Afinal, havendo intervenção de Nossa Senhora ou não, quem iria assumir o risco de padecer no inferno por toda a eternidade?
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
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2 comentários:
ioahuiahiau
Maneiríssimo cara. Tava pensando... uma forma de avaliar a intervenção divina é avaliar a impossibilidade física do evento em questão. Quer dizer, um estudo em cima das possibilidades de ter o netinho nascido como nasceu (naturalmente) corresponderia ao erro tipo II. É a possibilidade de rejeitar a hipótese nula sendo ela verdadeira.
Quer dizer... a chance do nenêm nascer como nasceu naturalmente é a chance de cometer o Erro tipo II, que se trata de negar a intervenção divina quando NA VERDADE ela ocorreu. Isso explica porque as pessoas acreditam mais na intervenção divina quando os eventos são muito difíceis de terem ocorrido sem ela.
Postagem engraçada.
:D
um abraço!
Será que a Dona Nenê acredita em inferno ou no perdão divino? Perdão divino me parece menos cansativo e mais cômodo para uma pessoa religiosa. Mesmo que alguem cometa algum erro, algum desvio, algum pecado; não precisa se preocupar, pois a fraqueza do homem será compreendida.rs
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